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Deixem nossos velhos viverem (ou morrerem) em paz…

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Saímos do hospital depois de uma visita para um velho tio, farto de dias, rico de experiências, cansado de existir. Conversei muito com ele já que poucos o visitavam e creio que as muitas horas no leito hospitalar fossem entediantes. Aquele velhinho não falou de economia, política ou futebol, mas contou sobre seu passado. Quanto assunto, quanta coisa… Quanta vontade de descansar depois de tantos anos produzindo…  Seu assunto era o ontem, com pequenas variações também sobre o amanhã, o pós-leito que o aguardava… Ele não tinha esperanças de voltar para casa, mas sabia que os poucos tubos que o alimentavam e tentavam minimizar sua dor latente eram não mais que um paliativo para impedi-lo de dormir eternamente. Fiz questão de ouvi-lo muito, posto falar ser tudo o que ele podia fazer.

 

Ao sair daquele hospital, alguém que comigo estava disse: “Poxa, ele está sofrendo tanto… Porque será que Deus não o leva?”. Instantaneamente, sem tempo para pensar, respondi: Deus já o teria levado se o homem deixasse, mas por meio da ciência, estão prolongando o sofrimento desta vida, que realmente merecia o descanso.

 

O Salmo 90 diz o seguinte: “Só vivemos uns setenta anos, e os mais fortes chegam aos oitenta, mas esses anos todos só trazem canseira e aflições. A vida passa logo, e nós desaparecemos.” Naturalmente que temos que interpretar esta passagem não de forma literal, mas entendermos o kerigma, ou seja, a mensagem central, que neste caso é: a vida passa e quem vive além da conta, apenas sofre.

 

A única certeza que temos é que nossa existência humana não será eterna. Já nascemos sabendo que dos 150 anos não passaremos… Claro que é bem menos. Sabemos que somos finitos, mas não estamos tão preparados para lidar com esta realidade quando se trata de nossos pais ou avós. Queremos prolongar não apenas nossa vida, mas não queremos que nossos familiares concluam o ciclo da vida deles.

 

Impossível impedir que a chuva chegue, que o inverno esfrie o vento, que a folha caia e que nossos pais morram junto. Sim, todos partirão e o pior que podemos fazer é não nos acostumarmos com esta incontestável realidade.

 

Há algumas décadas as famílias assistiam seus progenitores morrerem naturalmente, dentro de casa. Chegava o dia em que a vovozinha simplesmente não acordava. Atualmente não vemos nossos velhos morrerem. Logo após o primeiro sinal de que algo não está indo bem, nós os levamos ao hospital, cirurgias são feitas, por vezes ficam nas UTIs da vida até a morte, solitários, com direito a madrugadas intermináveis, geladas e com visitas escassas.

 

Naturalmente que não estou defendendo aqui a prática da eutanásia, muito menos largar nossos velhos à própria sorte, mas estou falando sobre qual o limite ético, cristão e confortável entre o “cuidar do velho” e a distanásia*, que apenas prolonga o sofrimento daqueles que “Deus está chamando para descansar…”

 

Muitos não estão preparados para a morte dos velhos. Por vezes sequer querem tratar do assunto. Alguns que estão lendo este artigo, o fazem  ou com a testa franzida ou com o coração apertado. Contudo, chegará o dia em que nossa “máquina” entrará em colapso. O mundo está tão doido, que só o fato de usar a adjetivo “velho” (que aqui estou usando de propósito), já soa ofensivo. O passar dos anos não é natural para muitos, mas para o homem “moderno”, este passar dos anos é como uma ofensa divina, que deve ser disfarçada com eufemismos, do tipo, “melhor idade”. Para alguns velhice é doença, ou defeito…

 

O que leva uma família a prolongar infinitamente o sofrimento de um velhinho “querido”, cheio de tubos, aparelhos, agulhas e os mais variados tipos de drogas? Certamente que não é o amor pelo vovô ou pelo velho papai, mas é o amor por si mesmo. Como nós não queremos perder aquela pessoa ou não estamos preparados para vivermos sem ela, não queremos sofrer com  a morte do outro, assim, acabamos por prolongar o sofrimento daquele que dizemos amar, para procrastinar o nosso sofrimento. Disfarçado de amor ao outro, egoisticamente mantemos o sofrimento do outro para que nós não soframos a dor da perda. Contudo, muitos velhos prefeririam o descanso: “Estou cercado pelos dois lados, pois quero muito deixar esta vida e estar com Cristo, o que é bem melhor…” (Filipenses 1:23)

 

Especialmente quando este velho ou velha são cristãos, daí que menos preocupações ainda deveríamos ter com sua partida, posto, pela fé, sabermos que ele ou ela partirá desta vida de dores para uma existência espiritual de paz e descanso. Mas, como o descanso do outro significará dor para a família, inconscientemente a família escolhe a distanásia*, ou seja, “melhor que o outro sofra, mas não eu”.

 

Peço que isto não aconteça comigo. Gostaria que meus herdeiros deixassem minha vida passar desta existência para uma melhor, não entubado no vazio de um hospital, mas velhinho no aconchego do lar.

 

*Distanásia é a prática pela qual se prolonga, através de meios artificiais e desproporcionais, a vida de um enfermo incurável. Também pode ser conhecida como “obstinação terapêutica”. O termo distanásia foi proposto em 1904, por Morache, e tem sido empregado para definir a morte prolongada e acompanhada de sofrimento, associando-se à ideia da manutenção da vida através de processos terapêuticos desproporcionais.

 

 
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